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Este artigo é o quarto da série sobre o trabalho de advocacy no ciclo político escrito para a Sigalei. Neste texto falo sobre a implementação da política, que corresponde ao processo de transformar a política em uma prática ou ação.
Da formulação à implementação
Até os anos 1970 os cientistas políticos prestavam mais atenção na definição da agenda na formulação da política e estágios do processo de tomada de decisão, supondo que uma política bem desenhada seria traduzida, automaticamente, em uma implementação bem-sucedida. Porém, ao longo do tempo, o que se viu foi que as falhas eram intrínsecas ao processo de implementação. Percebeu-se que essa fase necessitava de considerável atenção e o processo de implementação deixou de ser negligenciado. Os estudos evoluíram desde então, sendo a década de 1980 marcada pela busca de uma estrutura teórica e hipóteses sobre a implementação; a década de 1990 organizada de forma a construir uma ponte entre as abordagens teóricas, ao elaborar estudos de caso, e construção de evidências empíricas para testar os modelos.
Nos artigos anteriores vimos que a formulação de uma política deve contar com definições precisas de seus objetivos, dos elementos operacionais (instrumentos), diretrizes e arranjos institucionais. O governo dispõe de uma série de instrumentos no desenho político com a intenção de provocar ações e atitudes da sociedade, seja para resolver problemas públicos ou alcançar objetivos de política. Porém, a decisão em políticas públicas é, em última instância, uma decisão governamental. O desenho da política e a implementação estão intimamente relacionados porque as escolhas feitas no desenho influenciarão profundamente a forma como a política é implementada o que, por sua vez, influencia seus resultados.
Um exemplo clássico da dificuldade em separar formulação da implementação pode ser visto por meio de um dos instrumentos políticos mais utilizados: o processo de elaboração de leis. A aprovação de uma lei por uma instância legislativa não resulta em uma ação imediata pelo Executivo, ou conformidade por parte daqueles que serão afetados por essa decisão. Se ela foi criada para impor a obrigatoriedade de execução de serviços à população, por exemplo, ela precisa ser regulamentada no Executivo, e pormenorizada para colocar em prática o texto legal. É o caso, por exemplo, das Portarias, que não possuem manifestação autônoma, sendo criadas para regulamentar a execução de uma lei, para determinar o cumprimento de uma instrução.
A fase da implementação é crítica ao sucesso de um programa porque é nesta fase que se dá a maior parte do contato entre sociedade e Estado.
Ao longo dos anos foram propostas várias abordagens para se analisar a implementação de uma política. Entre as abordagens mais comuns estão a top-down e a bottom-up, que serão explicadas em mais detalhes a seguir.
A abordagem top-down foi desenvolvida por analistas políticos entre 1960 e 1970, em estudos empíricos sobre falhas na implementação. Nesta abordagem, o desenho da política é crucial, pois se os objetivos não estão claros, a implementação já começa com dificuldades. A condições para implementação dessa perspectiva, portanto, são que os objetivos sejam claros e lógicos, que existam incentivos apropriados para influenciar o comportamento dos implementadores e estes estejam comprometidos e tenham habilidades suficientes para o desempenho da função. Na abordagem top-down, há uma percepção de que há suporte adequado dos grupos de interesse e do próprio governo, e não há mudanças nas condições socioeconômicas que possam minar o suporte político ou a teoria causal por trás da política.
A maior crítica a essa abordagem, como era de se esperar, é que ela não corresponde à realidade, pois dificilmente todas essas condições são satisfeitas durante o processo de implementação. Por este motivo, a teoria bottom-up surgiu nos anos 1970 e 1980 como uma resposta crítica à abordagem top-down.
Ao contrário da abordagem top-down, na bottom-up os implementadores possuem uma função importante, não apenas como os gerentes da política, mas como participantes ativos e auxiliares na melhoria das políticas definidas (muitas vezes reformulando os próprios objetivos da política).
Nesta abordagem, as seguintes condições devem ser satisfeitas: existência de funcionários engajados na linha de frente da administração (que os autores chamam de street level bureaucrats), boa relação entre o idealizador da política e a ponta que irá implementá-la, e boa comunicação e engajamento entre todos os implementadores. Percebe-se que a participação e o relacionamento entre todos os níveis é fundamental, há uma descentralização na solução de problemas e, por isso, observam-se menos falhas nos resultados da política implementada sob este enfoque. O quadro abaixo sintetiza as principais diferenças entre as duas perspectivas.
A fase de implementação de uma política é tão crítica que o documento síntese das Políticas Informadas por Evidências (PIE) – mencionada no artigo sobre formulação da política, desta série - possui uma seção dedicada às barreiras à implementação, na tentativa de que implementadores levem em consideração falhas observadas em outros contextos onde políticas semelhantes foram adotadas.
Após anos de estudo sobre esta fase no ciclo político, a literatura aponta para alguns consensos:
a) A fase da implementação é um continuum entre o governo central e local. As preferências dos implementadores e negociações entre toda a rede que compõe a implementação devem ser levadas em consideração na mesma grandeza de importância da definição dos objetivos da política;
b) A implementação é muito mais do que uma mera execução técnica de ordens políticas que vêm de cima. Ela corresponde a um processo político em si, que contribui para a remodelação ou até mesmo uma mudança completa nos objetivos da política;
c) Formulação e implementação são processos interdependentes, e não estágios isolados no ciclo. Além disso, influências externas de outras políticas ou de outros contextos (socioeconômicos, por exemplo) devem ser levados em consideração.
A própria literatura aponta que atores sociais e de mercado podem atuar como parceiros na implementação de programas desenhados primariamente no setor público. Os exemplos a seguir não são exaustivos, mas ilustram algumas formas pelas quais a sociedade pode contribuir neste estágio do ciclo político:
a) Com ação direta na implementação
Ø Quando entidades assistenciais não governamentais estabelecem parcerias com o governo, elas estão agindo como executoras da política. Desde 2014, com o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) - em vigor desde 2016 na União, Estados e Distrito Federal e, em 2017, nos municípios -, novos instrumentos jurídicos foram estabelecidos entre o governo e organizações sociais. São eles: Fomento e Colaboração, no caso de parcerias sem recursos financeiros, e Acordo de Cooperação, para parcerias sem recursos financeiros. As etapas estabelecidas na parceria se assemelham muito à abordagem bottom-up, por haver o envolvimento de todos na idealização de todo o processo: a) planejamento, b) seleção e celebração da parceria, c) execução, d) monitoramento e avaliação, e) prestação de contas. Mais detalhes sobre o MROSC, as formas de parceria com o governo e outros exemplos podem ser consultados em:
http://plataformamaisbrasil.gov.br/images/docs/MROSC/Publicacoes_SG_PR/LIVRETO_MROSC_WEB.pdf
b) Monitorando com atenção o processo de implementação da política
Ø Conforme já mencionado, a aprovação de uma lei não significa sua execução imediata, e nem que o processo se dará da forma como foi planejado. Um exemplo muito interessante do monitoramento de uma lei (compreendendo as fases da formulação, decisão e implementação) é o que fez o Instituto Oncoguia na Lei dos 60 Dias. Esta lei, em vigor desde 2012, estabelece que o início do tratamento oncológico (para qualquer tipo de câncer) seja iniciado em até 60 dias a partir da assinatura do laudo terapêutico (exame) ou em prazo menor, conforme necessidade terapêutica do caso. Para que entrasse em execução, essa lei precisaria ser regulamentada no órgão competente, no caso o Ministério da Saúde, o que ocorreu em 2013. Porém, no processo da regulamentação (que neste caso já podemos pensar como o início da fase da implementação) houve uma alteração no entendimento de quando deveria se iniciar este tratamento: a regulamentação previa que o início do prazo dos 60 dias deveria ser contado a partir da data do registro do diagnóstico no prontuário do paciente (primeira consulta após a realização do exame). O Instituto Oncoguia percebeu essa alteração e iniciou um grande esforço de articulação com membros do Ministério Público, Defensoria Civil, Congresso Nacional, o próprio Ministério da Saúde, como o apoio da imprensa e de várias outras associações de pacientes para que o trecho fosse alterado para o que previa a lei. Uma vez que a primeira consulta após a realização do exame pode demorar meses, este novo trecho na regulamentação não resolveria a necessidade de tratamento em tempo hábil para maior sobrevivência e qualidade de vida dos pacientes. A atenção dada aos documentos oficiais e todos os esforços de advocacy que vieram para revogação deste trecho na Portaria do Ministério da Saúde são um bom exemplo do tipo de monitoramento que a sociedade civil pode exercer tanto na implementação quanto em todas as fases do ciclo político.
c) Gerando evidências para verificar a efetividade da implementação
Ø Ainda considerando a Lei dos 60 Dias, a Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama) foi de grande relevância para avaliar a efetividade da implementação desta lei, após o sucesso na revogação do trecho da lei para o original. Em 2014, ela realizou uma pesquisa a nível nacional com a administração pública estadual, hospitais e centros de tratamento de câncer no Sistema Único de Saúde para identificar as principais dificuldades e avaliar se o tratamento estava realmente se iniciando em 60 dias, como previa a lei. Os resultados foram apresentados em audiência pública no Senado e uma grande campanha de mobilização de pacientes e da sociedade foi feita para demonstrar que a lei ainda não estava cumprindo os resultados esperados. O advocacy com base em evidências feitas a partir do monitoramento do processo de implementação de uma política pode ser um grande aliado para a melhoria dos serviços de saúde e de outros, de forma geral.
A literatura aponta que a lei é o instrumento político que demanda maior cuidado no processo da implementação. É fundamental reconhecer as rotinas organizacionais e preferências por instrumentos políticos particulares para minimizar o risco de falhas.
É mais fácil implementar uma lei se ela tem boa aceitação e conformidade entre todos envolvidos, por isso é tão importante a articulação com os implementadores (nível organizacional do governo). Ou seja, ao propor uma lei que envolva níveis organizacionais do governo, as organizações da sociedade podem conseguir resultados mais efetivos ao conversar e envolver esses grupos, para saber qual a melhor forma de melhorar o serviço. O consenso talvez seja difícil de ser alcançado, mas é um esforço válido para reduzir barreiras e obter resultados em um horizonte temporal mais curto.
Bibliografia sugerida:
Birkland, T.A. An introduction to the policy process: theories, concepts, and models of public policy making. 3rd ed, 2011.
Buse, K.; Mays, N.; Walt, G. Making Health Policy. Second edition, Open University Press, 2012.
Faria, C.A.P. (Org). Implementação de políticas públicas: teoria e prática. Editora Puc Minas, 2012.
Fischer, F.; Miller, G.; Sidney, M.S (editors). Handbook of Public Policy Analysis: theory, politics and methods. CRC Press, 2007.
Hill, M. Hupe, P. Implementing Public Policy: governance in theory and in practice. Sage Publications, 2002.
Peters, B.G. (2015). Advanced introduction to public policy. Cheltenham: Edward Elgar. 2015.
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